São quatro os pilares fundamentais sobre os quais se está construindo a Universidade do Coração. Os dois primeiros, Ahiṃsā (não causar dano a nenhum ser vivente) e Satyavacana (Veracidade, pronuncia-se "satia-vachana"), abrem as vias do coração. Os outros dois pilares, Lokakaiṅkarya (o serviço impessoal a todos os seres) e Dhyāna (meditação) pavimentam estas vias que conduzem ao coração, harmonizando a nossa atividade no mundo. Os falsos dogmas são aliados de moha (ilusão), a fascinação pessoal, e representam o maior e o mais persistente obstáculo para uma vida dedicada a não violência (Ahiṃsā) e à veracidade (Satyavacana).Satyavacana expressa aquilo no qual os demais pilares se resumem e que pode ser posto em termos da compreensão plena de que de nada adianta enganar a si mesmo, pois não existe outra via de realização senão aquela que nos conduz a consultar a verdade em nosso próprio coração.
O coração, assento dos afetos, cria nós que dificultam a análise íntima e impedem a realização. Para contemplar a verdade no âmago do coração temos que aprender a identificar o falso e a desenvolver coragem para nos conduzir a veracidade. Vejamos algumas expressões ocidentais de Satyavacana ao longo da história.
No período medieval a Igreja se via como a representante única da filosofia. A Igreja não admitia, por exemplo, os textos de Galileu (1564-1642), uma vez que este aceitava a teoria científica de Copérnico (1473-1543) de que a Terra girava em torno do sol. Para a Igreja, a relação entre a fé cristã e a razão (fides et ratio) era aquela discutida na Ratio Studiorum, o método pedagógico fundado em Agostinho (354–430), Anselmo (??- 805) e Tomás de Aquino (1225 – 1274) e que define a fé cristã como o pressuposto da razão – fides quaerens intellectum. Esta formulação praticamente define a questão da verdade no período medieval, representando o principal paradigma deste período.
O período moderno inaugura-se com o Discurso do Método (Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences – 1637) e as Meditações Metafísicas (Meditationes de prima philosophia – 1641) de Descartes (1596 – 1650), quando este formula a expressão cogito ergo sum (penso; logo, existo), que decorre do método de duvidar de tudo, inclusive dos dogmas da fé cristã, e que representou um caminho “alternativo” em relação àquele defendido pela Igreja. É o exercício metódico da dúvida quase herética que conduz Descartes à formulação de uma verdade irrefutável – a sua primeira certeza sensível – “penso, logo, existo”. Com Descartes o ocidente dá um primeiro passo em direção a Satyavacana.
Diz-se que a consciência individual inaugura-se no ocidente com Descartes porque Descartes não tem por princípio metodológico qualquer dogma de fé. Parte simplesmente do bom-senso e do direito que as pessoas de boa consciência têm de duvidar de tudo que pode ser ilusório. Em Descartes, a dúvida, que no período medieval era prova de heresia, torna-se um recurso metodológico para a libertação das falsas crenças. A certeza, ou convicção interior, expressa pelo cogito cartesiano, nasce, então, da dúvida, como a expressão de uma espécie de fé, ou seja, de fé em si mesmo. Assim entendida, a fé cartesiana não difere, inclusive, daquela certeza interior que teriam experimentado Copérnico e Galileu, quando estes ousaram duvidar radicalmente do dogma vigente e afirmar que a Terra girava.
A doutrina da iluminação da razão a partir de um poder de caráter transcendente orienta toda a filosofia ocidental. E durante o período medieval há todo um contexto em que a doutrina da iluminação estabelece-se como solução para o problema do conhecimento, mantendo que a mente humana possui em seu interior uma capacidade de "ver" a essência das coisas. Sto Agostinho, por exemplo, procura mostrar em De Trinitate, De Magistro, Tractatus in Joannen, que o nosso conhecimento do real só é possível em função de possuirmos uma centelha do fogo divino, a qual nos faz à imagem e semelhança de Deus. Já Descartes emprega o conceito dessa luz que nos seria natural, vinculada à intuição, e sustenta que a intuição não se confunde com o testemunho flutuante dos sentidos, nem com o juízo enganoso. Pelo contrário, defende que tal intuição viria de uma mente atenta, constituindo-se como aquela concepção indubitável que emerge unicamente da razão iluminada, em última instância, pela presença natural da centelha divina em nós. É neste contexto que Descartes encontra o ponto de partida para a sua epistemologia, a qual avança em relação aos resultados estabelecidos por São Tomás de Aquino.
São Tomás de Aquino discute em sua Suma Teológica (ST) a possibilidade da dúvida na doutrina teológica. Conclui que não se pode duvidar dos dogmas da Igreja, mesmo que existam motivos racionais para tal. Justifica-se fazendo uso do argumento de autoridade dos apóstolos, dos profetas e dos representantes eclesiásticos. A fé funda-se na revelação divina feita aos apóstolos e profetas que escreveram os textos canônicos (ST 1.1.8 - 2). Desse modo, caberia aos representantes eclesiásticos, unicamente, em função de sua autoridade, argumentar sobre a verdade. Devido à fraqueza de nossas mentes, seria necessário sustentar a nossa fé nos dogmas mesmo quando estes contrariassem a razão e o bom-senso, pois a razão filosófica sem o amparo da “graça” não alcançaria, por si só, a verdade. Para São Tomás, embora a filosofia representasse uma condição para compreender a palavra divina (ST 1.1.5) e fosse ela mesma uma espécie de revelação (ST 2-2.167.1), isto não eliminaria a necessidade de sermos fiéis às escrituras reveladas (ST 1.1.1). São Tomás crê que a fé nas escrituras, por fluir pela graça, jamais destrói a razão, senão que, ao subjugá-la, a fortalece (ST 1.1.8). Em São Tomás a verdade ainda não expressa Satyavacana, pois esta continua subserviente aos dogmas de fé expressos nas revelações da Igreja.
Empiristas e racionalistas, ao combateram, por dois flancos distintos, a fé medieval, de base tomista, marcam o início da modernidade. Enquanto Descartes enfrenta o problema da fundamentação do conhecimento no Discurso do Método e nas Meditações, quando coloca em dúvida todo o conhecimento que vem pelos sentidos (inclusive o conhecimento religioso), Bacon no Novum Organum (Novo Instrumento) procura contrapor-se ao Organum aristotélico e a sua ciência. Seja através da certeza interior, cartesiana, expressa como convicção, ou confiança em si mesmo, para pensar com método, seja através da capacidade baconiana de elaborar experimentos e descobrir as verdades, o fato é que, gradualmente, foi-se abandonando a idéia de ciência como um corpo de verdades dogmáticas fundadas na fé, conforme se defendia na Idade Média.
Os métodos de Descartes e Bacon opõem-se às doutrinas dos teólogos e aos dogmas de fé, e revelam, no caso de Descartes, como ouvir em nosso interior a verdade que habita em nós e, no caso de Bacon, como estabelecer os meios indutivos, isentos de ilusão, de conhecer a verdade do mundo exterior a nós mesmos. Uma vez que o pensamento escolástico estava repleto de erros, Descartes e Bacon buscam superar a tradição dogmática através de um método novo, caracterizado pelo padrão de rigor e certeza. Ambos concordam que os sentidos não são confiáveis, divergindo apenas quanto ao modo de empregarem a razão. Descartes formula um método dedutivo, enquanto Bacon começa com observações empíricas, a partir das quais procede por indução. Descartes busca ir do geral ao particular; Bacon, do particular ao geral. Bacon e Descartes partem da mesma visão crítica e cética em relação às possibilidades fideístas, e encontram soluções que, embora divergentes, mostram-se também como complementares – unidas, estas duas visões superam a autoridade da Igreja no campo do real e concreto e dão nascimento ao método que se funda no que aqui estamos chamando de Satyavacana.
Para a ciência moderna e a própria história, como se sabe, a aceitar a priori, como dogma, que a fé esteja na origem de qualquer conhecimento certo e verdadeiro, só pode levar a erros e equívocos. Surge aí a visão dicotômica ocidental da autoridade religiosa nas questões de fé e da autoridade da ciência nas questões de fato. Uma vez que a ruptura de Descartes e Bacon com o pensamento da tradição representa também uma forma de rejeição à autoridade da Igreja, a consequência será a ruptura da ciência nova com a tradição religiosa, que consegue subsistir, entretanto, recolhendo-se para o interior dos seus domínios, agora redefinidos em termos meramente teológicos e morais.
Na ciência ocidental, o que sobrevive do conceito denotado pelo termo fé corresponde, na verdade, ao sentido do termo em expressões como “fé na ciência”, onde a antiga oposição entre razão e fé já não estão mais presentes. Se o homem é um imitator Dei (imitador de Deus), nos termos pretendidos por Bacon para que o conhecimento fosse entendido como ciência aplicada na técnica; ou se o homem é dotado de luz divina, em função de ser feito a imagem e semelhança de Deus, como queria Descartes, o fato é que a fé na ciência distingue-se da fé, em seu sentido dogmático medieval.
O ponto importante para a nossa discussão é que a fé em seu sentido medieval está associada aos enganos e ilusões (moha), enquanto a “fé em si mesmo”, a fé que nasce da luz do coração quando este ilumina a razão, está associada com aquela forma de ciência que se deixa revelar como Satyavacana.
O caráter básico da razão iluminada pela centelha divina que reside no coração é originário do pensamento indiano. Na Índia, o poema filosófico de nome Bhagavad Gītā descreve como Arjuna experimenta de Satyavacana, na exata medida em que este se decide, de coração, pela verdade. O termo sânscrito que designa esta capacidade de centrar-se no coração para, a partir daí, contemplar a verdade e o sagrado é śraddhā (fé em si mesmo, certeza interior, convicção, fervor, coragem). O desenvolvimento de śraddhā implica na coragem para renunciar à fé cega (que não se submete ao teste da razão, do bom senso e da experiência).
Satyavacana, portanto, funda-se em śraddhā, ou seja, na coragem para abandonar os velhos dogmas de fé que, se descobre, não se coadunem com a verdade. Quando entendermos como fé, não a fides medieval, mas a certeza que se funda na experiência (Bacon) e que resiste à dúvida metódica (Descartes), encontramos, em verdade o que se designa pelo termo sânscrito consagrado na Bhagavad Gītā – śraddhā. Diferentemente do entendimento implícito na expressão medieval, fides quaerens intellectum, de que a fé é o pressuposto do conhecimento, afirmação que se provou falsa no domínio das ciências naturais; a expressão “śraddhā” quaerens intellectum, ao atualizar o sentido medieval da antiga fides, sugere uma proposição verdadeira em qualquer domínio. Daí expressar o referencial para designar aquilo que aqui definimos como Satyavacana, ou seja, aquele compromisso com a verdade que, nem a ciência materialista, nem a moral religiosa, haviam sido ainda capazes de equacionar adequadamente.