O śuddha (essência, puro) dharma (sagrado) constitui a matéria, por excelência, de que trata a Bhagavad Gītā. Representa a revelação do sentido essencial (śuddha) de sagrado (dharma) feita por Kṛṣṇa a Arjuna. Embora permeie todos os sistemas sectários – tanto ortodoxos (Vedanta, Shivaísmo, Samkhya, Yoga, etc.) como heterodoxos (Tantra, Budismo, Jainismo, etc.) – também os transcende, visto que o śuddha dharma não pode ser reduzido a palavras e sistemas, representando, antes, a experiência única decorrente do estado de espírito alcançado por Arjuna no momento que antecede a grande batalha da qual tomará parte.
Arjuna encontra-se além do estágio da pessoa religiosa comum. A sua confissão com Kṛṣṇa, se assim podemos chamar, é obra de um espírito maduro, que aprendeu a refletir antes de agir, para não ter razões de arrependimento e remorso. É, portanto, o próprio estado de espírito de Arjuna a causa para a sua conversão. Se há remorso e arrependimento em Arjuna isto se dá como antecipação dos resultados que supõe estar prestes a colher, em função das decisões a serem tomadas. O seu remorso é função da dor alheia, que quer redimir. O seu arrependimento e tristeza manifestam o desejo de possibilitar ao outro um caminho que também conduz à salvação. Daí que a fé que orienta a sua ação esteja abalada. Arjuna, entretanto, encontra-se no limiar de algo muito maior que a mera fé exterior que possuía no sagrado esboçado nas Escrituras. Ele está muito próximo de alcançar, em seu coração, um tipo de certeza e experiência com o sagrado que transcende a esfera daquilo que, até então, entendia meramente como objeto de fé.
Arjuna tinha fé nas verdades que lhe chegavam de fora, pelos sentidos. Possuía fé no que ouvia dos mestres e no que lia nas Escrituras. A sua fé, entretanto, nada mais representava que um estado de espera pelo sagrado. E Arjuna está próximo do encontro com o sagrado, que transformará a sua fé em śraddhā – termo sânscrito que, na Bhagavad Gītā, conota o estado de descoberta, ou de encontro real com o sagrado. Enquanto a fé é característica daqueles que, embora ignorem o sagrado, nele crêem, śraddhā é a característica daqueles que já experimentam daquilo que antes era mero objeto de fé.
Quando me refiro ao sagrado, não penso em algo em que se possa ou não “acreditar” e sim na experiência que nos leva a perceber o mundo como uma expressão desse sentimento de sagrado. Neste sentido, trata-se de uma vivência e de um estado de espírito fora do alcance daqueles para os quais o sagrado só se origina como mera “crença”, a partir daquilo que se ouviu ou leu nas Escrituras.
A temática sobre a essência (śuddha) do sagrado (dharma) surge com os antigos Ṛṣis do período védico. No caso da literatura sânscrita, a discussão sobre o sagrado (dharma) encontra o seu clímax no diálogo da Bhagavad Gītā, no qual Kṛṣṇa trata da eterna (sanātana) e sintética (yoga) ciência (vidyā) do absoluto (Brahman). A discussão sobre o sagrado, entretanto, está presente em todas as culturas, orientando o desenvolvimento das estruturas que organizam os mais distintos órgãos do tecido social. Os textos sagrados procuram responder a questão metafísica sobre o ser por meio de mitologias e teogonias. Ao considerarem o ser em sua ontologia e deontologia, esses textos definem, ainda que precariamente, os conteúdos passíveis de serem apreendidos e desenvolvidos no interior das inúmeras correntes religiosas e escolas de pensamento.
A Bhagavad Gītā não estabelece de forma rígida a dicotomia entre o sagrado e o profano. Pelo contrário, ensina que a essência (śuddha) do sagrado (dharma) oculta-se, igualmente, no sagrado e no profano – duas faces de uma mesma moeda. Deste modo, quando, no capítulo inicial da Bhagavad Gītā, Arjuna mostra-se em crise e depõe as suas armas, está, de fato, manifestando esta oposição profano-sagrado, típica de uma compreensão meramente intelectual, mediatizada, dos textos sagrados. Falta a Arjuna, neste momento, compreender a dialética do concreto, a qual permite que o profano que organiza o social (varṇāśrama dharma) apresente-se também como possibilidade de manifestação da essência do sagrado (śuddha dharma). Kṛṣṇa trata no segundo capítulo desta harmonização do “universo interior” (dharma-kṣetra) com o “universo exterior” (Kuru-kṣetra), que torna possível agir na esfera do profano para que a mesma nos revele a sua face de sagrado.
De acordo com a Bhagavad Gītā, a percepção dicotômica da realidade em pares como profano-sagrado é consequência de uma mente ainda indisciplinada e presa a um funcionamento de base materialista e egoísta, definido tecnicamente como funcionamento guṇa-para (orientado pelas “aparências”). O verso verso 67 do segundo capítulo (BhG 2.67) – correspondente ao verso dezesseis do capítulo 18 da edição da Bhagavad Gītā do Śuddha Dharma Maṇḍalam, ordenada segundo o comentário de Hamsa Yogi (SDM 18.16) – expressa esse funcionamento condicionado à ordem do profano (varṇāśrama dharma) afirmando: “a mente que se deixa influenciar pelos sentidos é como um barco sem rumo, ao sabor dos ventos”. Superar esta condição de sujeição, entretanto, não implica em uma fuga da ordem profana (varṇāśrama dharma), conforme pretende Arjuna neste momento. Pelo contrário, conforme explica Kṛṣṇa na metáfora da tartaruga no verso 58 do mesmo capítulo (BhG 2.58 e SDM 5.21), implica em uma mudança de atitude, ou seja, uma “internalização da ordem externa”: “assim como uma tartaruga recolhe todos os seus membros para dentro do casco, assim também o aspirante é capaz de recolher os seus sentidos para dentro de seu coração, livre da escravidão imposta pelos estímulos da realidade externa.” Tal internalização é definida no texto como funcionamento ātma-para, ou seja, funcionamento altruísta e orientado pelo sagrado.
Há dentro de nós esses dois cachorros em luta, diz uma velha metáfora indígena – um bom e outro mau. Quem vencerá? Aquele que alimentarmos, responde o velho índio. Este exemplo resume bem o espírito prático da mudança de funcionamento explicitada na mensagem de Kṛṣṇa. E o seu entendimento se dá antes pela prática que pelo mero estudo teórico de textos sagrados. Pressupõe, acima de tudo, a capacidade de enfrentar e superar, tal qual Arjuna, todas as formas de desalento mental, até que se encontre, ontologicamente, sob todas as aparências do profano, o limiar da essência do sagrado – o śuddha dharma. O diálogo da Bhagavad Gītā representa esse limiar que torna mais tênues as zonas delimitadas por Arjuna como as suas realidades “interna” e “externa”. Eis aí o seu mistério iniciático.
Ao aceitar a mensagem do śuddha dharma revelada por Kṛṣṇa, Arjuna, pode-se dizer, morre para a sua condição profana (funcionamento guṇa-para, orientado pelo varṇāśrama dharma). A experiência do sagrado (funcionamento ātma-para, orientado pelo śuddha dharma), portanto, representa um renascimento, o qual não depende apenas de certo conhecimento ou tipo de ação, mas desse comportamento simbólico, que envolve força, coragem e conhecimento para redefinir todo o campo (kṣetra) da atividade humana como um campo de possibilidades para expressar o sagrado (dharma). Enquanto o ser funciona a partir de sua base material e egóica (funcionamento guṇa-para) a sua atividade se dá na esfera do profano. Entretanto, quando passa a funcionar orientado pela luz do coração (funcionamento ātma-para) entra para a esfera do sagrado.
Arjuna terá ainda que enfrentar muitos adversários, verdadeiros guardiões, que procuram velar o sentido de sagrado da experiência humana. O seu desafio será transcender a experiência do profano, não pela via escapista daqueles que renunciam ao mundo e se escondem sob as vestes do religioso, mas pela via yóguica, que faz do campo de batalha apenas mais uma oportunidade para a grande síntese dialética do sagrado. Após ter aprofundado o seu espírito de devoção (bhakti) e recuperado a fé interior, o entusiasmo e o fervor (śraddhā) Arjuna terá que exercitar no campo de batalha do profano (Kuru-kṣetra) o conhecimento adquirido sobre o funcionamento ātma-para (orientado para o Espírito Santo), até que todo o seu ser se encha da energia do sagrado (śraddhā) e o mundo todo então se reapresente como uma expressão da essência do sagrado, ou śuddha dharma.
As religiões ocupam-se da fé nas Escrituras, enquanto a Bhagavad Gītā ocupa-se do sentimento de fé interior, ou fervor do coração (śraddhā), que dá origem a todas as religiões. O significado de śuddha dharma aproxima-se mais daquele de espiritualidade que de religião, sem, entretanto, privilegiar o espírito à custa do corpo. Pelo contrário, compreende o corpo como uma expressão do sagrado. Estabelece-se, portanto, a igual distância dos materialistas e dos espiritualistas, aos quais, a um só tempo, compreende e transcende. Daí o conselho de Kṛṣṇa para Arjuna atuar no plano material (representado por Kuru-kṣetra), mas com a sabedoria e os valores do plano espiritual (representado como Dharma-kṣetra).
Harmonizando e unificando as distintas escatologias religiosas, o śuddha dharma possibilita ao ser participar daquela essência do sagrado que subsiste a tudo, inclusive ao Apocalipse e ao último capítulo de nossa própria história. O śuddha dharma não se refere, nem está vinculado, a qualquer igreja ou instituição religiosa. Não representa uma escola confessional em particular, uma vez que o seu embasamento filosófico se dá sob a forma de diálogo, envolvendo os distintos pontos de vista da tradição. A sua ênfase está na reflexão crítica sobre a moral religiosa. Apresenta-se como uma deontologia, ou ciência do dever, possibilitando a atuação no mundo a partir de uma abordagem antropológica e de respeito às diversas manifestações culturais e em consonância com o desenvolvimento do sentimento de sagrado de todas as coisas. Este é o sentido em que Kṛṣṇa pede a Arjuna para que este atenda ao cumprimento de todos os seus deveres.
Declarado justo e apto por Kṛṣṇa, Arjuna, que já não anda segundo a carne (guṇa-para), mas segundo o espírito (ātma-para), pode desempenhar a sua sagrada missão de lutar pelo restabelecimento do plano da justiça. Daí o limiar e o renascimento de Arjuna pelo Espírito (ātma-para). Em seu caso não se pode falar em arrependimento como causa da sua conversão. Não se trata mais de uma simples regeneração, mas de um verdadeiro processo de santificação e sacralização do ser, que é promovido da escala do humano para o plano do divino. Por nascer de dentro, este processo já não pertence à esfera da religião, que apenas promove reformas de fora e no plano do humano. Representa a transcendência ao estágio de pertencimento a esta ou aquela religião em particular.
Em suma, como vimos, este tipo de experiência de sublimação e transcendência daquilo que antes era mera fé, no sânscrito da Bhagavad Gītā, a língua por excelência do sagrado, se diz śraddhā. Śraddhā transcende a fé (latim: “fides”; grego “pistis” – crença), pois não é cega, nem se opõe ao bom-senso e à razão. Encher-se de śraddhā, tal como se deu com Arjuna, implica em uma espécie de conversão, ou mudança de estado de mente, não de uma direção para outra qualquer, mas do funcionamento guṇa-para para ātma-para, ou seja da direção orientada para a experiência mundana para aquela revelada pela experiência do sagrado. Daí se dizer que constitua uma experiência de natureza universal, que transcende os limites culturais definidos nas distintas religiões, pois se dá pela comunhão com o Espírito Santo no sagrado do nosso coração.