Aconteceu no dia 31 de agosto de 2012, exatamente oito meses após o estabelecimento da Pedra Fundamental da Comunidade da Vida Divina, a Unidade do Śuddha Sabha Ātma, a cerimônia oficial de inauguração deste espaço, responsável pelo estabelecimento da primeira Universidade do Coração e dedicado a materializar em atos o conceito de Bhāvana, a Unidade da Vida. A consciência do Bhāvana representa a energia do amor, fonte da coragem e da força, necessárias para o reconhecimento dos verdadeiros valores humanos e, consequentemente, da capacidade de cultivar a nossa real natureza. Muito deve ser mudado em nós e no mundo – a produção e a distribuição dos bens da Terra, a espiritualidade, a educação, a perspectiva da ciência, as ciências da saúde, as artes, os códigos, as instituições, a política, enfim todas as formas de inter-ser que estão redefinindo o papel de ser no limiar deste novo Período Axial.
Um período axial caracteriza-se por mudanças radicais na arquitetura do pensamento que forja as novas formas de civilização. Karl Jaspers definiu o Período Axial como aquele entre 800 e 300 BCE, quando o anseio de auto realização surgiu, simultaneamente e de maneira independente, em três grandes regiões do mundo – China, Índia e Europa. De forma semelhante ao que se deu no Período Axial, desde meados do século XX, temos assistido a mudanças aceleradas em escala mundial, com o sentimento de Bhāvana redesenhando as relações entre as pessoas de distintas culturas, raças, classes sociais, etc. A própria ciência se reinventa para pensar na interdependência de todas as formas de vida.
Enquanto o primeiro período axial caracterizou-se pela reunião de personalidades extraordinárias como Confúcio e Lao Tsé na China, Buda e Mahavira na India, os profetas Elías, Isaías, Jeremías na Mesopotâmia, Sócrates e Platão na Grécia e Zoroastro na Pérsia; este novo período, cujo campo define-se no interior de nossas consciências, caracteriza-se, não pelas personalidades, mas pelos princípios multiculturais, espiritualistas e holísticos, que reconhecem a vida como sagrada. Bhāvana, ou seja, o reconhecimento do sagrado da vida, está agora sendo experimentado em escala mundial. Estamos tomando consciência de que não há uma única expressão de miséria, violência, injustiça, que não resulte da ausência do sentimento de Bhāvana. Daí estarmos cultivando o sentimento de Bhāvana, desenvolvendo o devido respeito e reverência por todas as formas de vida.
As guerras, a pobreza, a desigualdade, e a degradação dos níveis de qualidade de vida na Terra levaram-nos a perceber as limitações dos ideais iluministas fundados, unicamente, na racionalidade humana. Com os pesticidas envenenando a flora e a fauna e as indústrias poluindo a água e o ar, todo comércio vira sinônimo de tráfico, onde os bens de consumo representam as diferentes drogas. Somente pelo coração percebe-se que a vida representa um valor supremo. Pelo coração, percebe-se que a natureza obedece a princípios de justiça e justeza segundo os quais os efeitos estão sempre relacionados com as causas.
Diferentemente da atividade instintiva dos animais, a ação humana, que tem um componente moral, se dá em função de alguma razão. Enquanto os animais se desenvolvem com perfeição, reagindo instintivamente às cadeias de causas e efeitos, os humanos, dotados da razão, procuram fazer uso dela. Quando a razão se deixa conduzir pelas emoções, entretanto, tomam-se decisões racionais imperfeitas e injustas. Somente quando a razão se ilumina pelos valores do coração, promove o sentimento de justiça, o qual deriva da capacidade de amar e de distinguir o falso do verdadeiro. Aí desenvolvemos o desejo de sermos justos e aprendemos a guiar as nossas percepções, de modo a vermos e compreendermos tudo pelo coração, e a promovermos a cultura da paz.
Compreendemos, deste modo, que a vida é sagrada e que o embrutecimento do ser resulta de sua exposição às condições de degradação e injustiça. E esta compreensão nos mobiliza em direção às mudanças de atitudes, comportamentos e hábitos, para promover a paz e o respeito à Vida. Indivíduos e grupos culturais em todo o planeta mostram-se progressivamente comprometidos com o desenvolvimento pleno de todas as potencialidades do espírito humano, elevando os níveis de bem estar e paz. A energia e a vibração de movimentos como o vegetarianismo e o veganismo, por exemplo, já irradiam o sentimento de que a paz e a inofensividade constituem valores universais do espírito humano.
O Espírito, que reside no coração do homem, representa a base filosófica, normativa e psicológica deste novo período axial, orientado pelo conceito de Bhāvana. Bhāvana expressa-se, sobretudo, pela imaginação, representando o exercício de perceber as realidades que ainda não existem no presente, para trazê-las para este plano de existência. A conscientização e o interesse para a dimensão espiritual da existência é unicamente humana. Buscamos as virtudes do espírito do mesmo modo que a força gravitacional puxa para a Terra as coisas que lhe pertencem. E o interesse na proteção do espírito humano é, portanto, um interesse por aqueles valores transculturais e trans-históricos que promovem o completo desenvolvimento do potencial humano.
Aos poucos, o mundo está sendo redescoberto sob a lente de esperança governada pela justiça de Bhāvana, que a tudo torna bom, belo e sagrado, e funciona como uma bússola a nos orientar em nossas decisões. Bhāvana expressa-se em nossa resposta a beleza de uma ideia, de uma teoria cientifica, e também em nossa capacidade de síntese e transcendência em nossas relações com os nossos semelhantes e demais seres da natureza. Ao traduzir a ordem, a beleza, a justiça e o próprio sentido do universo, Bhāvana possibilita o aprimoramento do processo civilizatório global, capacitando a todos para o trabalho impessoal em prol do mundo. A motivação para contribuir no tecido social em constante transformação surge de dentro do individuo, levando cada um, necessariamente, a compreender que ajudar aos outros e a si mesmo são os dois aspectos de um mesmo processo que relaciona o serviço ao próximo com o avanço individual e coletivo de toda a sociedade.
Na medida em que a consciência individual desenvolve instrumentos para a investigação da realidade, reconhece, naturalmente, que aquilo que considerava verdade requer atualização. Quando os poderes da consciência se expandem e o indivíduo começa a refletir sobre as dimensões abstratas da existência, ele desenvolve o poder de lidar com o mundo das ideias e valores que transcendem o meramente concreto. A consciência individual, então, iluminada por princípios éticos universais derivados do sentimento de Bhāvana, passa a atuar sob a orientação de uma vontade firme. E o resultado de uma consciência individual assim orientada reflete-se em mudanças em todo o tecido social.
Daí que a Universidade do Coração estimule a educação espiritual, visando o desenvolvimento da consciência moral e do discernimento ético, os quais decorrem do sentimento de Bhāvana, que se baseia nos quatro princípios fundamentais do Śuddha Sanātana Dharma (a essência eterna do sagrado) – Ahiṃsā (não causar dano a nenhum ser vivente) e Satyavacana (Veracidade, pronuncia-se "satia-vachana"), Lokakaiṅkarya (o serviço impessoal a todos os seres) e Dhyāna (meditação) –, conforme discutido no texto “Atrevamo-nos, já que somos humanos” (1937) de Sri Janardana. Conforme se infere do seminal artigo de Sri Janardana, a educação deve estimular o desenvolvimento da capacidade de ir além daquilo que prescrevem os costumes, de modo a se desenvolver a “lente interior”, que torna possível discernir aquela ação impessoal que é verdadeira (Satyavacana), justa e adequada para o desenvolvimento pacífico e não-violento (Ahiṃsā) da coletividade (Loka-kaiṅkarya).
O interesse da Universidade do Coração pelo desenvolvimento dos valores e princípios universais que caracterizam o espírito humano e garantem a manutenção da paz verdadeira traduz-se no Bhāvana, o qual se expressa mais ou menos nos seguintes termos:
Penso com amor divino que todas as coisas e seres hão nascido de dentro do Espírito Universal, que a tudo compenetra e a tudo sustém, em uma ordem constante e em vida eterna. Portanto, todos os seres, inferiores e superiores, participam de uma mesma vida e formam nos espaços infinitos um só corpo cósmico.
O amor é o vínculo que dá unidade e sentimento de corpo à diversidade. E é a isto que se designa propriamente como sentimento de Bhāvana, ou sentimento de justiça e unidade de todas as coisas e seres. A exposição à violência e ao desamor destrói o desenvolvimento do espírito. A injustiça destrói o amor que ainda é fraco. Quando um organismo está morrendo e as suas diversas partes deixam de funcionar, os sinais vitais (respiração, pulso cardíaco, etc.) revelam que os distintos órgãos do corpo já não podem fazer as suas funções de tal maneira que o corpo inteiro se beneficie. O mesmo vale para o corpo social. A expressão mais óbvia de desunião no tecido social é a violência, que atinge, principalmente, aqueles que vivem a exclusão social. Johan Galtung introduz em seu artigo “Violence, Peace, and Peace Research” (1969) a expressão “violência estrutural” para designar aquela forma de violência imposta pelas estruturas sociais, de modo a impedir que as pessoas tenham oportunidade de acesso às suas necessidades básicas. Daí decorrem os problemas relacionados com a perda de motivação, diminuição da capacidade cognitiva e da habilidade de resolver problemas, bem como os distúrbios da vida emocional, como a depressão e a tristeza profunda. Por isto se diz que o amor é o jeito que dá jeito em tudo o que não tem jeito, recuperando os indivíduos e fazendo avançar o processo civilizatório.
Há um vínculo entre as ações e a vida interior. Quando a vida interior é motivada pelo desejo de servir, as ações daí decorrentes tornam-se sagradas. Quanto mais pura for a vida mental de uma pessoa, maior será o efeito de suas ações sobre o mundo. Daí a importância do exercício do Bhāvana para desenvolver uma boa vontade, pois sem ela não se pode fazer de cada ação uma ação ritualística e realizar as coisas pela razão correta. É o coração que orienta as ações retas. É no coração do homem, onde reside o Espírito Universal, que Matéria e Espírito se harmonizam, fazendo do mundo material um reflexo do mundo espiritual. Conforme se depreende da saudação indiana “Namasté”, que significa “o sagrado em mim saúda o sagrado em você”, pode-se dizer que o coração humano se assemelha a um espelho e o encontro de dois corações puros refletem, um para o outro, uma luz celestial.
Bhāvana pode ser compreendido como aquele poder, exclusivamente humano, que nos capacita para reconhecer o sagrado em nossas relações e, consequentemente, para distinguir a essência última da verdade em todas as coisas. Qualquer escolha que se faça tem um efeito indireto sobre as escolhas que outros podem fazer. Existimos em uma “innernet” que nos faz a todos interdependentes, conectados pelo espírito de vida que alenta a todo o coração que bate. Este sentimento de pertencimento cósmico, característica deste novo Período Axial, já se faz tão presente que ninguém pode mais reivindicar a sua humanidade sem levar em conta o que significa compartilhar este planeta com os demais seres, em suas múltiplas formas de vida.
Sob a luz de Bhāvana, estimula-se a reflexão sobre a nossa responsabilidade moral de salvaguardar os valores universais intrínsecos, que nos identificam e, ao mesmo tempo, acomodar os distintos valores culturais, extrínsecos, que nos distinguem uns dos outros. Quando as nossas escolhas orientam-se pelo eterno presente em nosso coração e não pelos valores convencionais, socialmente construídos, o mundo material passa a ser visto como um instrumento para a busca espiritual e o desenvolvimento humano.
Em suma, quando as forças espirituais, isto é, o amor, o conhecimento e a consciência, fecundam a realidade material, promovem e valorizam a vida em todas as suas formas, redefinindo, inclusive, a função e o entendimento da educação. A finalidade da educação passa a ser compreendida em termos da transformação do individuo e da sociedade, de modo que estes possam refletir o conceito de unidade e de sagrado, presentes na natureza e na natureza humana. E é com este fim que se estabeleceu a Comunidade da Vida Divina do Śuddha Sabha Ātma.